quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A ÁGUA MINERAL DE ALDEIA – PARTE 3



Por: Ilo Jorge de Souza Pereira
Especialista em Gestão Pública e Política.

O QUE É DESAFETAÇÃO?
As áreas institucionais possuem classificação, segundo o Código Civil Brasileiro, de bens públicos de uso comum do povo, podendo ser áreas de saúde, verde ou escolar.
Dentro deste conceito, os imóveis somente podem ser alienados após a sua desafetação, conforme lei específica. Retirando a qualificação de bem de uso comum do povo ou de bem especial o imóvel se torna um bem dominical, que pode ser alienado por permuta. Nesse sentido, têm-se os artigos 100 e 101 do Código Civil Brasileiro:
Art.100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
Art.101. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.”
Merece transcrição a opinião Hely Lopes Meirelles, em seu Direito Municipal Brasileiro, 14ª edição:
Os bens públicos, quaisquer que sejam, podem ser alienados, desde que a Administração satisfaça certas condições prévias para sua transferência ao domínio privado ou a outra entidade pública.
O que a lei civil quer dizer é que os bens públicos são inalienáveis enquanto destinados ao uso comum do povo ou a fins administrativos especiais, isto é, enquanto tiverem afetação pública, ou seja, destinação pública específica.
Exemplificando: uma praça pública ou um edifício público não podem ser alienados enquanto tiverem esta destinação, mas qualquer deles poderá ser vendido, doado ou permutado desde o momento em que seja, por lei, desafetado da destinação originária que tinha e transpassado para a categoria de bem dominial, isto é, do patrimônio disponível do Município.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 440/441).
Quando a Lei Federal n.º 6.766/79 exige, nos loteamentos, a destinação de áreas para a implantação de sistemas de circulação, de equipamentos urbanos e comunitários, bem como de espaços livres de uso público, proporcionais à densidade de ocupação da gleba, tal como previsto no plano diretor ou na lei referente à zona de situação do imóvel (Art. 4º), impõe uma regra cuja intenção é garantir condições adequadas de urbanização.
Deseja, de um lado, obrigar o cumprimento da legislação urbanística existente e, de outro, proteger os interesses dos que vão residir no loteamento, aos quais são devidas condições básicas para o exercício da vida comunitária, da cidadania e da inserção no meio urbano.
O Art.17 da Lei, com efeito, preceitua:
Art.17. Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da licença ou desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas as exigências do Art.23 desta Lei.”
Pela simples leitura do texto legal, em momento nenhum tal dispositivo impede o Município de desafetar os bens de uso comum do povo existentes em loteamentos e a sua posterior alienação.
A regra é endereçada ao loteador, tal como consta do destaque dado acima. Se geral fosse a regra, dirigida a todos ou dirigida, também, ao Município, a expressão “pelo loteador” seria desnecessária, sendo certo que as leis não possuem palavras ou expressões desnecessárias, inócuas, sem sentido. Se, na hipótese presente, diz a norma “pelo loteador”, a proibição contida no artigo é destinada, única e exclusivamente, ao loteador.
Assim, deve-se entender como possível a desafetação de áreas recebidas pelos Municípios em processos de loteamento, se presente o interesse público, em face da autonomia municipal e diante da inexistência de impedimento da Lei Federal.
A permuta de bem público, como as demais alienações, exige a autorização legal e avaliação prévia, mas não exige licitação, pela impossibilidade de sua realização, uma vez que a determinação dos objetos de troca não admite substituição ou competição licitatória, conforme o doutrinador Hely Lopes Meirelles.
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de ser plenamente possível a desafetação, sendo que a alteração da categoria de uso das áreas só pode ser realizada mediante lei.
A Terceira Turma já se posicionou acerca da exigibilidade de autorização legislativa para a realização de alienação de bem público imóvel para a realização de alienação de bem público imóvel.
Apesar disso, alguns interpretam que a autorização legal para a desafetação da categoria de bem recebido pelo Município, para o fim de lhe dar destinação diferente da originalmente prevista, necessária em todos os casos, pode não ser suficiente com relação às áreas transferidas em processos de loteamento. Nessa alternativa, pode ser exigível a prévia concordância dos adquirentes de lotes (Art.28 de Lei n.º 6.766/79).
Diz o mencionado art.28:
Art. 28. Qualquer alteração ou cancelamento parcial do loteamento registrado dependerá de acordo entre o loteador e os adquirentes de lotes atingidos pela alteração, bem como da aprovação pela Prefeitura Municipal ou do Distrito Federal quando for o caso, devendo ser depositada no Registro de Imóveis, em complemento ao projeto original, com a devida averbação”.
Impõe-se a regra diante do fato de que, ao adquirir o lote, o comprador torna-se titular do uso e goza de uma parcela de terras inserida num conjunto, o loteamento, que segundo o projeto, aprovado pela Prefeitura e inscrito no Registro de Imóveis, contém áreas verdes, áreas destinadas a equipamentos públicos e comunitários e um arruamento pré-definido.
Qualquer alteração no loteamento afeta, desse modo, o direito de cada qual dos adquirentes, conforme ensina José Afonso da Silva:
A inscrição do loteamento produz os seguintes efeitos urbanísticos:
a) legitima a divisão da gleba em lotes, com a perda da individualidade objetiva do terreno loteado e a aparição das individualidades objetivas dos lotes;
b) torna imodificável unilateralmente o plano de loteamento e o arruamento;
c) transfere para o domínio público do Município e torna inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação, e os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes dos planos de arruamento e loteamento e do memorial, independentemente de qualquer outro ato alienativo.
(…)
As modificações no plano de loteamento são geralmente admitidas, mediante autorização da Prefeitura, desde que se observem as normas vigentes sobre o assunto, bem como do adquirente de lote (…)”. (In Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, pp. 391-3).
Veja-se, contudo, que a lei trata dos “adquirentes de lotes atingidos pela alteração”. Não de todos os adquirentes de lotes, salvo se todos forem atingidos, o que não corresponde ao intuito ou à previsão da lei, que os individualiza. O Tribunal de São Paulo tem firmado entendimento de que só em casos muito específicos pode a desafetação ser anulada, como ocorre em casos que não há interesse público envolvido. No julgado envolvido, estava em jogo regra específica da Constituição do Estado de São Paulo, que dispõe:
Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:
(…)
VII – as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão, em qualquer hipótese, ter sua destinação, fim e objetivos originalmente estabelecidos alterados.”
A decisão estava escudada em regra somente válida para o Estado de São Paulo. A desafetação de áreas de uso comum do povo, como exemplo das áreas institucionais e verdes, não encontra proibição na Lei Orgânica do Município do Salvador e na legislação pertinente, sendo então passíveis de ocorrer, atendendo, assim, ao interesse público, e, de modo especial, aos reclamos e necessidades dos adquirentes dos lotes.
Há casos, contudo, em que os loteamentos já se encontram ou passam a ser servidos pelo conjunto das facilidades urbanas referentes à saúde, educação, lazer e demais exigências, não se justificando o uso das áreas reservadas ao uso público, para a implantação de novos equipamentos. De outro lado, pode ocorrer que as áreas recebidas pelo Município não se prestem aos fins originalmente previstos, em face de sua posição ou características físicas ou em face de suas dimensões.
Em tais hipóteses, é razoável admitir a desafetação das áreas e sua alienação ou permuta, de modo a permitir, ao Poder Público, melhor organizar o uso do solo da cidade e atender aos interesses públicos da coletividade.
Ao mesmo tempo, se não ocorrer prejuízo para os adquirentes de lotes, incabível a indenização, uma vez que esta só seja válida, só se justifica na ocorrência de danos. Inexistindo esses, não cabe cogitar-se de indenização.
Nada há, portanto, que possa impedir o Município de continuar a, nos casos em que for julgado necessário e com a devida justificativa, autorizar e executar a desafetação de áreas de loteamentos, recebidas para a implantação de equipamentos comunitários ou áreas verdes, e sua venda ou permuta, mesmo porque a lei não impede tais atos, tendo elas sido admitidas por decisões do Superior Tribunal de Justiça.
Argumentar ao contrário, significa dizer que a sociedade não progride, que os comportamentos são imutáveis, que as necessidades de hoje serão as mesmas no final da próxima década.
Cabe, por último, dizer que a Constituição de 1988 concedeu plena autonomia ao Município (Art. 18), assim explicitada por Hely Lopes Meirelles:
A autonomia administrativa confere ao Município a faculdade de organizar e prover seus serviços públicos locais, para a satisfação das necessidades coletivas e pleno atendimento dos munícipes, no exercício dos direitos individuais e no desempenho das atividades de cada cidadão.
Essa autonomia abrange a prerrogativa de escolha das obras e serviços a serem realizados pelo Município, bem como do modo e forma de sua execução ou de sua prestação aos usuários.” (in “Estudos e Pareceres de Direito Público”, cit. por Fábio Nadal Pedro, opus cit.).
E aduz Fábio Nadal Pedro:
Logo, a destinação dos bens públicos integrantes do patrimônio municipal possuem destinação cambiável, segundo os superiores interesses da comuna. Com efeito, Alfredo Buzaid, citado pelo Des. Oetterer Guedes, ensina: “O bem público de uso comum pode sofrer modificações em sua qualificação jurídica, e tornar-se alienável, sempre que a Municipalidade, para atender a fins urbanísticos, lhe retire a condição de bem de uso comum, por lei especial devidamente sancionada pelo Chefe do Executivo.” (TJ/SP – ADIn nº 39.949-0/0-00 – São Paulo – voto nº 17.309).
Na mesma trilha, Vicente Ráo consigna:
É preciso considerar-se que os bens públicos conservam sua qualificação peculiar, enquanto realizam o destino correspondente à sua respectiva categoria, perdendo-a, consequentemente, quando, por determinação legal, receberem destino outro ou diverso.” (in “O Direito e a Vida dos Direitos” apud, Des. Oetterer Guedes, TJ/SP, ADIn nº 39.949-0/0-00 – São Paulo – voto nº 17.309).
Em face de sua autonomia, diante da Lei de Loteamentos (Lei Federal n.º 6.766/79) e em face dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça, nada há que possa impedir o Município de realizar a desafetação de áreas de loteamento, recebidas para a implantação de equipamentos comunitários ou áreas verdes e sua consequente alienação, desde que precedida da necessária autorização legislativa.
Com o advento da Lei Federal n.º 6.766/79, a Administração Pública da União, dos Estados e dos Municípios, passou a coordenar e disciplinar o crescimento urbanístico brasileiro, de forma a proporcionar um meio ambiente urbano mais saudável, de modo a impedir o crescimento desordenado das cidades, tendo se estabelecido regras mínimas de parcelamento e desmembramento do solo urbano.
O legislador federal determinou que em todo parcelamento para fins urbanísticos deverá ser reservada área mínima, em percentual estabelecido pela legislação local, para implantação de sistema de circulação, equipamentos urbanos, comunitários e espaços livres para uso público, proporcionais à densidade de ocupação (Art. 4º da Lei Federal n.º 6.766/79), sendo que, desde a data do registro do loteamento, essas áreas, também conhecidas como áreas institucionais, passarão a integrar automaticamente o domínio do município (Art. 22), que no caso passa a funcionar como verdadeiro tutor da população. Assim, tais áreas seriam afetadas por lei como de uso comum do povo.
Vale dizer que, após regular processo de desafetação para o rol dos bens dominiais do município, não há óbice ou afronta constitucional a alienação (doação, venda, permuta) ou a livre disposição de posse (concessão de direito real de uso) de bens públicos oriundos de loteamento que se mostram inservíveis ao interesse público, desde que sejam respeitadas certas exigências (realização de licitação e autorização legislativa).
Insere, pois, na competência discricionária da Administração em resolver qual a melhor finalidade a ser dada a estas áreas institucionais e verdes oriundas de loteamento, tendo sempre em vista a real necessidade de propiciar utilidade ao bem público como prevalência da supremacia do interesse público.
As referidas áreas foram colocadas sob a tutela do Município para preservar os interesses dos administrados, principalmente os adquirentes dos lotes. A importância desse patrimônio público deve ser aferida em razão da importância de sua destinação tendo em vista sua função ut universi, o que implica, em muitos casos, a necessidade de desafetá-lo, através de lei ou ato administrativo, permitindo a alienação como qualquer bem de particular, transformando-se em bens dominiais e resguardando o interesse público envolvido.

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