Por: Ilo Jorge de Souza Pereira
Especialista
em Gestão Pública e Política.
O
QUE É DESAFETAÇÃO?
As
áreas institucionais possuem classificação, segundo o Código
Civil Brasileiro, de bens públicos de uso comum do povo, podendo ser
áreas de saúde, verde ou escolar.
Dentro
deste conceito, os imóveis somente podem ser alienados após a sua
desafetação, conforme lei específica. Retirando a qualificação
de bem de uso comum do povo ou de bem especial o imóvel se torna um
bem dominical, que pode ser alienado por permuta. Nesse sentido,
têm-se os artigos 100 e 101 do Código Civil Brasileiro:
“Art.100.
Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são
inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma
que a lei determinar.
Art.101.
Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as
exigências da lei.”
Merece
transcrição a opinião Hely Lopes Meirelles, em seu Direito
Municipal Brasileiro, 14ª edição:
“Os
bens públicos, quaisquer que sejam, podem ser alienados, desde que a
Administração satisfaça certas condições prévias para sua
transferência ao domínio privado ou a outra entidade pública.
O
que a lei civil quer dizer é que os bens públicos são inalienáveis
enquanto destinados ao uso comum do povo ou a fins administrativos
especiais, isto é, enquanto tiverem afetação pública, ou seja,
destinação pública específica.
Exemplificando:
uma praça pública ou um edifício público não podem ser alienados
enquanto tiverem esta destinação, mas qualquer deles poderá ser
vendido, doado ou permutado desde o momento em que seja, por lei,
desafetado da destinação originária que tinha e transpassado para
a categoria de bem dominial, isto é, do patrimônio disponível do
Município.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal
brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 440/441).
Quando
a Lei Federal n.º 6.766/79 exige, nos loteamentos, a destinação de
áreas para a implantação de sistemas de circulação, de
equipamentos urbanos e comunitários, bem como de espaços livres de
uso público, proporcionais à densidade de ocupação da gleba, tal
como previsto no plano diretor ou na lei referente à zona de
situação do imóvel (Art. 4º), impõe uma regra cuja intenção é
garantir condições adequadas de urbanização.
Deseja,
de um lado, obrigar o cumprimento da legislação urbanística
existente e, de outro, proteger os interesses dos que vão residir no
loteamento, aos quais são devidas condições básicas para o
exercício da vida comunitária, da cidadania e da inserção no meio
urbano.
O
Art.17 da Lei, com efeito, preceitua:
“Art.17.
Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas
destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos,
constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter
sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do
loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da licença ou
desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas as exigências
do Art.23 desta Lei.”
Pela
simples leitura do texto legal, em momento nenhum tal dispositivo
impede o Município de desafetar os bens de uso comum do povo
existentes em loteamentos e a sua posterior alienação.
A
regra é endereçada ao loteador, tal como consta do destaque dado
acima. Se geral fosse a regra, dirigida a todos ou dirigida, também,
ao Município, a expressão “pelo loteador” seria desnecessária,
sendo certo que as leis não possuem palavras ou expressões
desnecessárias, inócuas, sem sentido. Se, na hipótese presente,
diz a norma “pelo loteador”, a proibição contida no artigo é
destinada, única e exclusivamente, ao loteador.
Assim,
deve-se entender como possível a desafetação de áreas recebidas
pelos Municípios em processos de loteamento, se presente o interesse
público, em face da autonomia municipal e diante da inexistência de
impedimento da Lei Federal.
A
permuta de bem público, como as demais alienações, exige a
autorização legal e avaliação prévia, mas não exige licitação,
pela impossibilidade de sua realização, uma vez que a determinação
dos objetos de troca não admite substituição ou competição
licitatória, conforme o doutrinador Hely Lopes Meirelles.
Neste
sentido, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de ser
plenamente possível a desafetação, sendo que a alteração da
categoria de uso das áreas só pode ser realizada mediante lei.
A
Terceira Turma já se posicionou acerca da exigibilidade de
autorização legislativa para a realização de alienação de bem
público imóvel para a realização de alienação de bem público
imóvel.
Apesar
disso, alguns interpretam que a autorização legal para a
desafetação da categoria de bem recebido pelo Município, para o
fim de lhe dar destinação diferente da originalmente prevista,
necessária em todos os casos, pode não ser suficiente com relação
às áreas transferidas em processos de loteamento. Nessa
alternativa, pode ser exigível a prévia concordância dos
adquirentes de lotes (Art.28 de Lei n.º 6.766/79).
Diz
o mencionado art.28:
“Art.
28. Qualquer alteração ou cancelamento parcial do loteamento
registrado dependerá de acordo entre o loteador e os adquirentes de
lotes atingidos pela alteração, bem como da aprovação pela
Prefeitura Municipal ou do Distrito Federal quando for o caso,
devendo ser depositada no Registro de Imóveis, em complemento ao
projeto original, com a devida averbação”.
Impõe-se
a regra diante do fato de que, ao adquirir o lote, o comprador
torna-se titular do uso e goza de uma parcela de terras inserida num
conjunto, o loteamento, que segundo o projeto, aprovado pela
Prefeitura e inscrito no Registro de Imóveis, contém áreas verdes,
áreas destinadas a equipamentos públicos e comunitários e um
arruamento pré-definido.
Qualquer
alteração no loteamento afeta, desse modo, o direito de cada qual
dos adquirentes, conforme ensina José Afonso da Silva:
“A
inscrição do loteamento produz os seguintes efeitos urbanísticos:
a)
legitima a divisão da gleba em lotes, com a perda da individualidade
objetiva do terreno loteado e a aparição das individualidades
objetivas dos lotes;
b)
torna imodificável unilateralmente o plano de loteamento e o
arruamento;
c)
transfere para o domínio público do Município e torna
inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação, e os
espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e
outros equipamentos urbanos, constantes dos planos de arruamento e
loteamento e do memorial, independentemente de qualquer outro ato
alienativo.
(…)
As
modificações no plano de loteamento são geralmente admitidas,
mediante autorização da Prefeitura, desde que se observem as normas
vigentes sobre o assunto, bem como do adquirente de lote (…)”.
(In Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1981, pp. 391-3).
Veja-se,
contudo, que a lei trata dos “adquirentes de lotes atingidos pela
alteração”. Não de todos os adquirentes de lotes, salvo se todos
forem atingidos, o que não corresponde ao intuito ou à previsão da
lei, que os individualiza. O Tribunal de São Paulo tem firmado
entendimento de que só em casos muito específicos pode a
desafetação ser anulada, como ocorre em casos que não há
interesse público envolvido. No julgado envolvido, estava em jogo
regra específica da Constituição do Estado de São Paulo, que
dispõe:
“Art.180.
No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao
desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:
(…)
VII
– as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes
ou institucionais não poderão, em qualquer hipótese, ter sua
destinação, fim e objetivos originalmente estabelecidos alterados.”
A
decisão estava escudada em regra somente válida para o Estado de
São Paulo. A desafetação de áreas de uso comum do povo, como
exemplo das áreas institucionais e verdes, não encontra proibição
na Lei Orgânica do Município do Salvador e na legislação
pertinente, sendo então passíveis de ocorrer, atendendo, assim, ao
interesse público, e, de modo especial, aos reclamos e necessidades
dos adquirentes dos lotes.
Há
casos, contudo, em que os loteamentos já se encontram ou passam a
ser servidos pelo conjunto das facilidades urbanas referentes à
saúde, educação, lazer e demais exigências, não se justificando
o uso das áreas reservadas ao uso público, para a implantação de
novos equipamentos. De outro lado, pode ocorrer que as áreas
recebidas pelo Município não se prestem aos fins originalmente
previstos, em face de sua posição ou características físicas ou
em face de suas dimensões.
Em
tais hipóteses, é razoável admitir a desafetação das áreas e
sua alienação ou permuta, de modo a permitir, ao Poder Público,
melhor organizar o uso do solo da cidade e atender aos interesses
públicos da coletividade.
Ao
mesmo tempo, se não ocorrer prejuízo para os adquirentes de lotes,
incabível a indenização, uma vez que esta só seja válida, só se
justifica na ocorrência de danos. Inexistindo esses, não cabe
cogitar-se de indenização.
Nada
há, portanto, que possa impedir o Município de continuar a, nos
casos em que for julgado necessário e com a devida justificativa,
autorizar e executar a desafetação de áreas de loteamentos,
recebidas para a implantação de equipamentos comunitários ou áreas
verdes, e sua venda ou permuta, mesmo porque a lei não impede tais
atos, tendo elas sido admitidas por decisões do Superior Tribunal de
Justiça.
Argumentar
ao contrário, significa dizer que a sociedade não progride, que os
comportamentos são imutáveis, que as necessidades de hoje serão as
mesmas no final da próxima década.
Cabe,
por último, dizer que a Constituição de 1988 concedeu plena
autonomia ao Município (Art. 18), assim explicitada por Hely Lopes
Meirelles:
“A
autonomia administrativa confere ao Município a faculdade de
organizar e prover seus serviços públicos locais, para a satisfação
das necessidades coletivas e pleno atendimento dos munícipes, no
exercício dos direitos individuais e no desempenho das atividades de
cada cidadão.
Essa
autonomia abrange a prerrogativa de escolha das obras e serviços a
serem realizados pelo Município, bem como do modo e forma de sua
execução ou de sua prestação aos usuários.” (in “Estudos e
Pareceres de Direito Público”, cit. por Fábio Nadal Pedro, opus
cit.).
E
aduz Fábio Nadal Pedro:
“Logo,
a destinação dos bens públicos integrantes do patrimônio
municipal possuem destinação cambiável, segundo os superiores
interesses da comuna. Com efeito, Alfredo Buzaid, citado pelo Des.
Oetterer Guedes, ensina: “O bem público de uso comum pode sofrer
modificações em sua qualificação jurídica, e tornar-se
alienável, sempre que a Municipalidade, para atender a fins
urbanísticos, lhe retire a condição de bem de uso comum, por lei
especial devidamente sancionada pelo Chefe do Executivo.” (TJ/SP –
ADIn nº 39.949-0/0-00 – São Paulo – voto nº 17.309).
Na
mesma trilha, Vicente Ráo consigna:
“É
preciso considerar-se que os bens públicos conservam sua
qualificação peculiar, enquanto realizam o destino correspondente à
sua respectiva categoria, perdendo-a, consequentemente, quando, por
determinação legal, receberem destino outro ou diverso.” (in “O
Direito e a Vida dos Direitos” apud, Des. Oetterer Guedes, TJ/SP,
ADIn nº 39.949-0/0-00 – São Paulo – voto nº 17.309).
Em
face de sua autonomia, diante da Lei de Loteamentos (Lei Federal n.º
6.766/79) e em face dos entendimentos do Superior Tribunal de
Justiça, nada há que possa impedir o Município de realizar a
desafetação de áreas de loteamento, recebidas para a implantação
de equipamentos comunitários ou áreas verdes e sua consequente
alienação, desde que precedida da necessária autorização
legislativa.
Com
o advento da Lei Federal n.º 6.766/79, a Administração Pública da
União, dos Estados e dos Municípios, passou a coordenar e
disciplinar o crescimento urbanístico brasileiro, de forma a
proporcionar um meio ambiente urbano mais saudável, de modo a
impedir o crescimento desordenado das cidades, tendo se estabelecido
regras mínimas de parcelamento e desmembramento do solo urbano.
O
legislador federal determinou que em todo parcelamento para fins
urbanísticos deverá ser reservada área mínima, em percentual
estabelecido pela legislação local, para implantação de sistema
de circulação, equipamentos urbanos, comunitários e espaços
livres para uso público, proporcionais à densidade de ocupação
(Art. 4º da Lei Federal n.º 6.766/79), sendo que, desde a data do
registro do loteamento, essas áreas, também conhecidas como áreas
institucionais, passarão a integrar automaticamente o domínio do
município (Art. 22), que no caso passa a funcionar como verdadeiro
tutor da população. Assim, tais áreas seriam afetadas por lei como
de uso comum do povo.
Vale
dizer que, após regular processo de desafetação para o rol dos
bens dominiais do município, não há óbice ou afronta
constitucional a alienação (doação, venda, permuta) ou a livre
disposição de posse (concessão de direito real de uso) de bens
públicos oriundos de loteamento que se mostram inservíveis ao
interesse público, desde que sejam respeitadas certas exigências
(realização de licitação e autorização legislativa).
Insere,
pois, na competência discricionária da Administração em resolver
qual a melhor finalidade a ser dada a estas áreas institucionais e
verdes oriundas de loteamento, tendo sempre em vista a real
necessidade de propiciar utilidade ao bem público como prevalência
da supremacia do interesse público.
As
referidas áreas foram colocadas sob a tutela do Município para
preservar os interesses dos administrados, principalmente os
adquirentes dos lotes. A importância desse patrimônio público deve
ser aferida em razão da importância de sua destinação tendo em
vista sua função ut universi, o que implica, em muitos
casos, a necessidade de desafetá-lo, através de lei ou ato
administrativo, permitindo a alienação como qualquer bem de
particular, transformando-se em bens dominiais e resguardando o
interesse público envolvido.
Nenhum comentário:
Postar um comentário