Especialista em Gestão Pública e Política.
Contratação direta de alimentação escolar: uma hipótese de dispensa de
licitação não arrolada na Lei federal nº 8.666/93
1. Introdução
O Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, criado pela Lei federal nº
11.947/ 09, tem por objetivo contribuir para o crescimento e o desenvolvimento
biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos
alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e
nutricional, e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades
nutricionais durante o período letivo, articulando a produção de agricultores
familiares e as demandas das escolas para atendimento da alimentação escolar.
Com a finalidade
de perseguir tais objetivos, o art. 14 da mencionada lei determina que no
mínimo 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação – FNDE, no âmbito do PNAE, deverão ser utilizados na aquisição de
gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor
familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos da reforma
agrária, as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, podendo-se
dispensar a instauração de licitação, conforme preconiza o § 1º.
Assim, cria-se uma hipótese distinta de dispensa de licitação, podendo apenas
ser utilizada no âmbito da aquisição de alimentação escolar, cuja
aplicabilidade é dissociada das hipóteses arroladas no art. 24 do estatuto
federal licitatório.
2. O programa
O PNAE é uma modalidade do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, criado
pela Lei nº 10.696/03, conforme estabelece o art. 5º do Dec. federal nº
6.447/08, alterado pelo Dec. nº 6.959/09, cuja finalidade é incentivar a
agricultura familiar, compreendendo ações vinculadas à distribuição de produtos
agropecuários para pessoas em situação de insegurança alimentar e à formação de
estoques estratégicos. No âmbito do PAA, a contratação dos alimentos produzidos
também é realizada com isenção de licitação, conforme estabelece o § 2º do art.
19 da mencionada lei, por preços de referência que não podem ser superiores nem
inferiores aos praticados nos mercados regionais, até o limite de R$ 9.000,00
ao ano por agricultor familiar que se enquadre no Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, exceto na modalidade incentivo
à produção e consumo do leite, cujo limite é semestral.
3. Hipótese de dispensa de licitação não arrolada no Estatuto federal
Licitatório
O § 1º do art. 14 da Lei federal nº 11.947, de 16.6.09, no âmbito do PNAE cria
uma hipótese de contratação direta a qual não se encontra prevista no Estatuto
federal Licitatório.
Poder-se-ia, a priori, estranhar a existência de permissivo que dispensa
licitação esparso na legislação federal quando existe uma lei nacional que
versa sobre normas gerais de licitação. Todavia, observe-se que esse não é o
único caso em que encontramos dispositivos que afastam a licitação não
arrolados entre os arts. 24 e 25 da Lei federal nº 8.666/93. Nesse sentido, a
título de ilustração, o § 2º do art. 8º da Lei federal nº 11.652/08 autoriza a
contratação da Empresa Brasil de Comunicação diretamente, dispensando-se,
assim, o competente certame.
A própria Constituição Federal abarca tal possibilidade, na medida em que
estabelece no inc. XXI do art. 37 que, "ressalvados os casos especificados
na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados
mediante processo de licitação pública (...)" (grifamos).
Com efeito, se as exceções à regra de licitar estivessem, ou necessitassem
estar arroladas em apenas uma lei, o mandamento constitucional não seria
grafado da forma mencionada, mas, sim, desta forma: "ressalvados os casos
especificados na lei, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública (...)" (grifamos).
Corroborando nossa assertiva e concedendo outros exemplos acerca da criação de
hipóteses de dispensa de licitação em normas esparsas, ressalva o jurista Jorge
Ulisses Jacoby Fernandes, in verbis:
"No art. 24 da Lei nº 8.666/93, com a redação alterada pela Lei nº
8.883/94, foram estabelecidas originariamente vinte hipóteses em que é
dispensável a licitação. A Lei nº 9.648/98 acresceu mais quatro.
Posteriormente, novas leis vêm ampliando esse já extenso rol de novas
hipóteses.
(...)
Há possibilidade de adventícias legislações esparsas inovarem o tema,
reconhecendo outros casos de dispensa de licitação, como ocorreu com a Lei nº
8.880/94, (...) autorizando a contratação de institutos de pesquisas sem
licitação. O que mais se evidencia no estudo da dispensa de licitação é a falta
de sistematização, o casuísmo, com que tem procedido o legislador. Incisos com
má redação foram inseridos no art. 24 muitas vezes para regularizar a
contratação considerada irregular pelo TCU.
No que tange a legislação posterior à Lei nº 8.883/94, a situação é de fácil
equacionamento:
– se for lei federal que criar outras hipóteses de dispensa, poderá ser
constitucional e válida" (Contratação Direta sem Licitação: Dispensa de
Licitação; Inexigibilidade de Licitação: Comentários às Modalidades de
Licitação, Inclusive o Pregão, 7ª ed., Belo Horizonte,Fórum, 2008, p. 304).
Acerca da aplicabilidade da hipótese de dispensa de licitação em relevo, deve
levar-se em conta a sua regulamentação, fixada pela Lei nº 11.947/09 – Dec. nº
6.447/08 –, alterada pelo Dec. nº 6.959/09 e pela Resolução CD/FNDE nº 38, de
16.7.09, sendo incorreto associar a sua aplicação com os demais permissivos que
afastam a licitação, constantes na Lei de Licitações, em especial com os limites
por compra por agricultor familiar com o teto estabelecido no inc. II do art.
24.
Todavia, tendo em vista que o expediente trata de uma exceção à regra da
obrigatoriedade de licitar, a implementação desse programa não admite
interpretação ampliativa das suas diretrizes, devendo essa política pública ser
implantada nos estritos termos do competente regulamento, a fim de evitar
futuro questionamento pelos órgãos de controle.
Nesse sentido, ressalva Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, in verbis:
"De qualquer modo, como as normas que versam sobre dispensa de licitação
abrem exceção à regra da obrigatoriedade da licitação, recomenda a hermenêutica
que a interpretação seja sempre restritiva, não comportando ampliação"
(ob. cit., p. 489).
4. Da implementação do programa
4.1. Necessidade da elaboração do cardápio da alimentação escolar
Em relação à operacionalização do referido programa, o primeiro estágio fixado
pela cartilha "Passo-a-passo para compra e venda a agricultura familiar
para a alimentação Escolar", [01] criada pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário, é a elaboração do cardápio pelo nutricionista
responsável técnico pelo PNAE, na forma do Anexo II da Resolução CD/FNDE nº 38,
respeitando-se referências nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura
alimentar da localidade, pautando-se na sustentabilidade e diversificação
agrícola da região e na alimentação saudável e adequada, conforme estabelece o
art. 15 da referida resolução.
Assim, deverão ser mapeados os produtos produzidos pela agricultura familiar e
pelos empreendedores familiares, priorizando os hábitos locais, dentre eles
aqueles praticados em comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de
quilombos, uma vez que, conforme o § 3º do dispositivo narrado, deverão conter
no cardápio escolar alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as
tradições e os hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e
desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar.
4.2. Publicação da aquisição dos alimentos
Tais informações devem ser enviadas para as Entidades Executoras – EE, ou seja,
as secretarias municipais ou estaduais de educação, conforme o inc. II do art.
6º, para que, na forma do art. 21 do referido regulamento, seja publicada a
demanda de aquisições de gêneros alimentícios da agricultura familiar para
alimentação escolar por meio de chamada pública de compra, em jornal de
circulação local, regional, estadual ou nacional, quando houver, além de
divulgar em seu sítio na Internet ou na forma de mural, em local público de
ampla circulação.
Anote-se que se deve garantir a efetiva publicidade da aquisição dos alimentos
àquelas comunidades desprovidas de acesso ao referido tipo de informação, como,
por exemplo, comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de
quilombos, a fim de garantir que o cardápio da alimentação escolar contenha
alimentos que respeitem a cultura alimentar da localidade, conforme estabelece
o § 3º do art. 15 do regulamento.
4.3. Fixação dos preços (termo de referência)
Na forma do art. 23 da resolução estudada, na ocasião da definição dos preços
para a aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e dos
empreendedores familiares rurais, a entidade executora deverá considerar os
preços de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos
– PAA, criado pela Lei nº 10.696, de 2.6.03, de que trata o Dec. nº 6.447/ 08,
alterado pelo Dec. nº 6.959/09.
Entende-se por preço de referência, na seara do referido programa, o preço
médio pesquisado em âmbito local, regional, territorial, estadual e nacional,
nessa ordem dos produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar
rural.
Nas localidades em que não houver definição de preços no âmbito do PAA, os
preços de referência deverão ser calculados com base em um dos seguintes
critérios:
I – Quando o valor da chamada pública da aquisição dos gêneros alimentícios da
agricultura familiar e do empreendedor familiar rural for de até R$ 100.000,00
por ano:
a) média dos preços pagos aos agricultores familiares por três mercados
varejistas, priorizando a feira do produtor da agricultura familiar, quando
houver; ou
b) preços vigentes de venda para o varejo, apurados junto a produtores,
cooperativas, associações ou agroindústrias familiares em pesquisa no mercado
local ou regional.
II – Quando o valor da chamada pública da aquisição dos gêneros alimentícios da
agricultura familiar e do empreendedor familiar rural for igual ou superior a
R$ 100.000,00 por ano:
a) média dos preços praticados no mercado atacadista nos doze últimos meses, em
se tratando de produto com cotação nas Ceasas ou em outros mercados
atacadistas, utilizando a fonte de informações de instituição oficial de
reconhecida capacidade; ou
b) preços apurados nas licitações de compra de alimentos realizadas no âmbito
da entidade executora em suas respectivas jurisdições, desde que em vigor; ou
c) preços vigentes, apurados em orçamento, junto a, no mínimo, três mercados
atacadistas locais ou regionais.
4.4. Habilitação dos proponentes
Conforme estabelece o art. 22 da resolução mencionada, os fornecedores dos
alimentos escolares serão agricultores familiares e empreendedores familiares
rurais, detentores de Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – DAP física e/ou jurídica, conforme a
Lei da Agricultura Familiar nº 11.326, de 24.7.06, e enquadrados no Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, organizados em
grupos formais e/ou informais.
Observe-se que os grupos informais deverão ser cadastrados junto à entidade
executora por uma entidade articuladora, responsável técnica pela elaboração do
projeto de venda de gêneros alimentícios da agricultura familiar para a
alimentação escolar.
Em relação à entidade articuladora, esta deverá estar cadastrada no Sistema
Brasileiro de Assistência e Extensão Rural – Sibrater ou ser sindicato de
trabalhadores rurais, sindicato dos trabalhadores da agricultura familiar ou
entidades credenciadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA para
emissão da DAP.
As funções da entidade articuladora serão assessorar a articulação do grupo
informal com o ente público contratante na relação de compra e venda, como
também comunicar ao controle social local a existência do grupo, sendo este
representado prioritariamente pelo Conselho de Alimentação Escolar – CAE,
Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural – CMDR e pelo Conselho Municipal de
Segurança Alimentar e Nutricional – Comsea, quando houver.
Tal entidade não poderá receber remuneração, proceder a venda nem assinar como
proponente. Não terá responsabilidade jurídica nem responsabilidade pela
prestação de contas do grupo informal.
No processo de habilitação, deverá ser apresentada à entidade executora, por
parte dos grupos informais de agricultores familiares, a documentação fixada no
§ 2º (DAP de cada agricultor participante, CPF, projeto de venda e prova de
atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso). E no
caso dos grupos formais da agricultura familiar e de empreendedores familiares
rurais constituídos em cooperativas e associações, deverão ser apresentados os
documentos arrolados no § 3º (DAP jurídica, CNPJ, cópia de certidões negativas
junto ao INSS, FGTS, Receita Federal e dívidas ativas da União, cópia do
Estatuto, projeto de venda e prova de atendimento de requisitos previstos em
lei especial, quando for o caso), ambos dispositivos constantes no art. 22 do
regulamento.
Conforme estabelece o § 4º do art. 18 da resolução, "na análise das
propostas e na aquisição, deverão ser priorizadas as propostas de grupos do
Município. Em não se obtendo as quantidades necessárias, estas poderão ser
complementadas com propostas de grupos da região, do território rural, do estado
e do país, nesta ordem de prioridade".
Em relação ainda à aquisição dos alimentos, conforme estabelece o § 4º do art.
25 da resolução, deverá a entidade executora exigir apresentação de amostras
para avaliação e seleção do produto a ser adquirido, as quais deverão ser
submetidas a testes necessários, imediatamente após a fase de habilitação.
4.5. Contratação da demanda
No caso de existência de mais de um grupo formal ou informal participante do
processo de aquisição para a alimentação escolar, deve-se priorizar o
fornecedor do âmbito local, desde que os preços sejam compatíveis com os
vigentes no mercado local, resguardadas as condicionalidades previstas nos §§
1º e 2º do art. 14 da Lei nº 11.947/09.
No processo de aquisição dos alimentos, as entidades executoras deverão comprar
diretamente dos grupos formais para valores acima de R$ 100.000,00 por ano.
Para valores de até R$ 100.000,00 por ano, a aquisição deverá ser feita de
grupos formais e informais – nesta ordem –, resguardando-se o previsto no § 2º
do art. 23 do regulamento estudado, que estabelece que na definição dos preços
para a aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar e dos
empreendedores familiares rurais a entidade executora deverá considerar os
preços de referência praticados no âmbito do Programa de Aquisição de Alimentos
– PAA, de que trata o Dec. nº 6.447/08. Nas localidades em que não houver
definição de preços no âmbito do PAA, os preços de referência deverão ser
calculados com base nos critérios previstos no art. 23, § 2º, da Resolução
CD/FNDE nº 38/09.
A atualização dos preços de referência deverá ser realizada semestralmente.
Os gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar
rural adquiridos para a alimentação escolar, que integram a lista dos produtos
cobertos pelo Programa de Garantia de Preços para a Agricultura Familiar –
PGPAF, não poderão ter preços inferiores a esses.
Anote-se que "o limite individual de venda do Agricultor Familiar e do
Empreendedor Familiar Rural para a alimentação escolar deverá respeitar o valor
máximo de R$ 9.000,00 (nove mil reais), por DAP/ano", conforme estabelece
o art. 24 do regulamento.
A contratação deverá ser instrumentalizada por meio do contrato de aquisição de
gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural,
cuja minuta é fixada no Anexo IV da referida resolução.
4.6. Qualidade dos alimentos adquiridos
Os produtos da agricultura familiar e dos empreendedores familiares rurais a
serem fornecidos para alimentação escolar serão gêneros alimentícios,
priorizando, sempre que possível, os alimentos orgânicos e/ou agroecológicos.
"Os produtos adquiridos para a clientela do PNAE deverão ser previamente
submetidos ao controle de qualidade, na forma do Termo de Compromisso (anexo
VI), observando-se a legislação pertinente", conforme estabelece o art. 25
da resolução.
Os produtos alimentícios a serem adquiridos para a clientela do PNAE deverão
atender ao disposto na legislação de alimentos, estabelecida pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária/ Ministério da Saúde e pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Por fim, em relação à execução do contrato de fornecimento de alimentação,
deverão, ainda, ser observadas as obrigações constantes na minuta do contrato
de aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar e do empreendedor
familiar rural, cuja minuta, novamente, encontra-se anexada na referida
resolução.
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