sexta-feira, 26 de julho de 2019

Alerta. O concreto está doente: quando a construção envelhece


Aos poucos, vão surgindo pintas amareladas. De repente, eis as trincas. Daí, os engenheiros têm de agir como médicos. Senão, um dia, a casa caí.
Existem pessoas que se dedicam a torturar o concreto, até ele não poder mais. Gente que aperta cilindros desse material cinzento entre robustos braços mecânicos. Chega uma hora, os cilindros espatifam-se com a pressão de dezenas de toneladas. E não é só isso.
Outras amostras — ou corpos de prova, como preferem os especialistas — são abandonadas em equipamentos que mais parecem geladeiras, ficando ali dentro expostas a fumaça, ácidos e temperaturas extremas.
Algumas das peças sacrificadas foram retiradas diretamente de pontes, barragens ou edifícios, com o auxílio de um aparelho capaz de cortar a rigidez do concreto, graças a uma afiadíssima lâmina de diamante. Mas há também pedaços de concreto moldados exatamente com essa finalidade — serem testados para ver qual a sua resistência. Se está baixa, é sinal de que o concreto pode ficar doente ou mesmo já adoeceu. O que, muitas vezes, se traduz em ameaça de ruína, ao pé da letra.
Para se ter uma ideia do tamanho da encrenca, 19 (dezenove) de cada 20 (vinte) edificações brasileiras — de pontes a hospitais, de barragens a escritórios e residências — são construídas com esse material. De fato, sua proporção de uso é altíssima em todos os cantos da Terra. Só no ano passado foram produzidas 1,4 bilhão de toneladas de cimento e isso dá para fazer uma montanha de 1 (uma) tonelada de concreto para cada cidadão do planeta.
O concreto surgiu na Europa em meados do século passado. Sua solidez, então, parecia eterna. Mas essa imagem ruiu. Os primeiros sinais de doença — marcas amareladas e rachaduras — apareceram nos anos 40, nos Estados Unidos, que, desde então, fazem exames periódicos nas obras.

Todo o cuidado, porém, não foi suficiente para evitar o que engenheiros americanos consideram uma epidemia. Calcula-se que 10% das estradas nos Estados Unidos, feitas de concreto em lugar de asfalto, estejam doentes, e 230.000 das 575.000 pontes existentes no país precisam de tratamento (aproximadamente 15.000 delas correm risco de vida, exigindo urgentemente uma UTI tecnológica).
Os números impressionantes deste último levantamento epidemiológico, por assim dizer, está deixando o Departamento do Transporte do Governo desesperado: preveem-se gastos de 50 bilhões de dólares, nos próximos dois anos, para realizar os primeiros socorros. Para conseguir dinheiro, o governo pode recorrer a um ligeiro aumento nos impostos — que, lá, não sobem assim, sem mais, nem menos.
Na Europa, o controle da saúde do concreto começou para valer apenas no final dos anos 70, quando surgiram as primeiras barragens doentes na França. No ano passado, os franceses constituíram um comitê técnico para cuidar das estruturas problemáticas. Outros países europeus estão fazendo o mesmo. No Brasil, tudo é mais devagar.
O estudo das doenças do concreto é uma das mais recentes áreas da Engenharia. Como nos seres humanos, existem problemas congênitos — por causa de material de baixa qualidade ou processos de construção inadequados, algumas estruturas já nascem doentes. As obras saudáveis, por sua vez, tendem a ficar doentes com o passar do tempo, assim como uma pessoa na terceira idade tem mais chance de ir parar no hospital.
Em todo caso, a distribuição das manchas e os desenhos formados pelas falhas são importantes para se diagnosticar o tipo de mal e a sua gravidade. “Há fissuras e fissuras”, distingue o engenheiro Paulo Helene, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Autor de três livros sobre o assunto e tradutor de outros três, Helene tem olhar clínico: “Para o leigo, uma rachadura incomoda muito, dando a impressão de que tudo irá desabar. Mas nós, engenheiros, observando a configuração das trincas, analisamos se a estrutura está comprometida.”
Entre as enfermidade nacionais, há uma cuja origem é familiar a cada um de nós: o gás de cozinha. Isso mesmo. A Congás consegue cobrar nas contas apenas cerca de metade da sua produção. Sinal de que a outra metade — ou parte dela — se perdeu em vazamentos. “No solo, o gás acaba formando o ácido sulfídrico”, explica Helene. “Essa substância ataca o concreto. Reage com seus componentes e, depois disso, ele começa a se expandir perigosamente.” Os engenheiros podem usar aditivos e cimentos especiais na receita do concreto, tornando-o menos reativo ao ácido sulfídrico, o vilão desta história. Podem ainda aplicar substâncias protetoras nas estruturas prontas. Enfim, dão um sumiço nos sintomas, apesar de o solo continuar contaminado.
Há casos em que o concreto não tolera tratamentos paliativos como esse por muito tempo. É o que está acontecendo na Barragem de Moxotó, em Alagoas. Construída há dezesseis anos pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), tinha tudo para chegar inteira aos 200 anos de vida. No entanto, ainda jovem, já está com os dias contados. Sua doença é outra, mas também faz o concreto engordar: trata-se da chamada reação álcali-agregado. A culpa é de ingredientes dele próprio, ou seja, é um ataque interno, contra o qual nenhuma terapia consegue fazer nada.
Os engenheiros fazem o que podem com Moxotó — o concreto se alarga, estrangulando as turbinas e eles vão lá, cortando pedaços ao redor, para deixar as hélices girar em paz. O efeito não dura para sempre. Uma das oito turbinas já teve de ser desligada. Os tais álcalis causadores do problema são a soda cáustica e o potássio, que todo cimento tem, uns mais, outros menos — e o cimento é o principal ingrediente do concreto. Já as pedras e a areia que também entram em sua composição são conhecidas por agregados e, às vezes, contêm moléculas reativas aos álcalis. Daí o nome da doença, reação álcali-agregado.
Ela é mais comum no Nordeste do país, onde as pedras disponíveis para se fazer o concreto são de origem vulcânica. Parte delas contém as tais moléculas reativas. São moléculas de sílica, substância encontrada em tudo quanto é rocha, pedrinha, pedregulho. A questão é que ela existe em duas versões: numa delas, a sílica está arrumadinha, na forma que os químicos rotulam de cristal. Na segunda versão, apresenta-se como moléculas amorfas e são elas que reagem com os componentes do cimento, resultando em moléculas grandalhonas, que colocam o concreto no maior aperto.
Há muito otimismo quando se discute a prevenção de doenças nas construções. Antes mesmo de se erguer um edifício, arquitetos e engenheiros estudam tudo o que pode ser feito para aumentar a sua longevidade. Os especialistas podem reunir elementos para afirmar se uma obra irá durar 50 ou 60 anos com saúde perfeita.
Mas, nessa matéria, fazer cálculos nem sempre é simples. Dá até para estimar o que irá acontecer com um prédio que ainda não foi construído ou por quanto tempo um concreto doente aguentará firme. Difícil é estimar a vida dos prédios espalhados pelas cidades, que ainda estão saudáveis. “Uma de nossas metas é saber quanto tempo dura todo concreto que já existe por aí”, explica o engenheiro Carlos Eduardo Tango, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em São Paulo. “Apesar de não viver para sempre, ele ainda é de longe o melhor material de construção conhecido.”
O concreto é a paixão do pesquisador, cuja tese foi uma análise do estado desse material nos prédios mais antigos do Brasil. Uma de suas conclusões é que já não se fazem concretos como antigamente: “As obras mais modernas tendem a ser menos resistentes”, afirma. Será que mudou tanto assim a receita do concreto com o passar do tempo? A resposta é não: ela continua a mesma. “Mas hoje as partículas de cimento são menores”, diz Tango. “Portanto têm mais superfície em contato com o reagente, que é a água.” Ocorre algo análogo ao que se dá com uma pastilha de sal de frutas — quebrada, ela derrete mais depressa.
A água é o bem e o mal do concreto. Sem ela, não há negócio: a água é imprescindível para o cimento endurecer. Mas que seja na medida certa. “Se é acrescentada de menos, o resultado é uma massa pouco maleável, difícil de se trabalhar”, explica o engenheiro do IPT. “Se é colocada só um pouquinho a mais, o concreto perde a sua famosa resistência.” Em outras palavras: torna-se mais poroso. Pois, apesar da aparência compacta, de perto, muito de perto, o concreto se assemelha a uma colméia.
O microscópio revela seus túneis, pelos quais passam os mais diversos agentes agressivos. Inclusive água, que pode se converter numa das suas piores inimigas. Isso porque ácidos e outros agressores se dissolvem e pegam carona no líquido, para alcançar as profundezas do concreto. “Tanto assim que as doenças são mais comuns nos climas úmidos”, observa o pesquisador. “Ou nas estruturas que têm contato direto com a água, como as pontes e as barragens.” É por isso que as casas dos pernambucanos, apesar de provavelmente terem sido feitas com a mesma espécie de concreto de Moxotó, não estão ameaçadas como a barragem.
Mas, justiça se faça, a água pura não tem nada contra o concreto. Mas quando alcança as barras de aço no seu interior, aí, sozinha, é fatal. O chamado concreto armado — a combinação desse material com barras de aço — é um casamento perfeito. Pois o concreto simples é ótimo para aguentar compressão, que os leigos definem como peso.
Quando alguém sobe numa tábua, por exemplo, está comprimindo a madeira. Numa casa de dois andares, por sua vez, os pilares do térreo estão suportando a compressão do segundo pavimento. Mas há uma qualidade que o concreto simples não tem: não resiste muito bem à tração, que é a força que se faz numa corda, quando duas pessoas puxam suas extremidades. É nessa característica — fundamental para a construção civil — que o aço é uma fera. Junto com o concreto, portanto, ele forma uma dupla imbatível.
No entanto, 90% dos casos de doenças no concreto são problemas de corrosão de sua armadura de ferro. A questão é tão séria que a Escola Politécnica da USP inaugurou, há dois meses, o Lab Cor, um laboratório dedicado à deterioração das barras dentro do concreto. O maior orgulho de seus pesquisadores é o chamado G-Cor. Não é à toa: só existem três exemplares desse aparelho no mundo. Há mais um nos Estados Unidos e outro na Espanha. O G-Cor emite uma corrente elétrica através de eletrodos, fixados na estrutura examinada. Antes, os pesquisadores se informam do diâmetro de barras daquela obra e calculam quanto da eletricidade será conduzido pelo metal.
Se houver diferença entre o resultado estimado e o registrado pelo aparelho, é sinal de que as barras entraram em corrosão. Isso porque, como a ferrugem não conduz eletricidade, se a corrente elétrica conduzida for menor do que o esperado, sabe-se que parte do metal já enferrujou. O G-Cor aponta ainda a exata proporção do metal enferrujado.
“Em geral, as doenças não ocorrem separadamente”, explica o engenheiro Luiz Alfredo Falcão Bauer. “Uma trinca, causada pela doença de expansão, pode deixar que a água alcance a armadura. Então, a ferrugem aparece, como um segundo mal.” A empresa fundada por Bauer há mais de quarenta anos, em São Paulo, é uma das pioneiras em tratamento do concreto no mundo. Quando aparecem grandes problemas, o engenheiro grisalho e bem-humorado costuma dar seu parecer. Ultimamente, vem estabelecendo limites: “Não viajo mais do que três vezes por mês para ver as minhas doentes.” Obras doentes, bem entendido.
Para o diagnóstico, Bauer e seus colegas de área contam com um arsenal de quase cinquenta exames. Corantes tingem de verde a área do material que perdeu resistência, por causa da maresia, por exemplo. “Usamos até o ultra-som, como os médicos, para avaliar a localização e o tamanho dos danos”, conta o engenheiro. “Felizmente, também não faltam terapias, que vão de revestimentos especiais a técnicas como os jatos de areia para retirar a ferrugem. Isso resolve boa parte dos casos. Mas o fundamental é melhorar a qualidade das obras, para que não adoeçam tanto e tão cedo.”



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