Aos poucos, vão surgindo pintas amareladas. De repente, eis as
trincas. Daí, os engenheiros têm de agir como médicos. Senão, um
dia, a casa caí.
Existem pessoas que se dedicam a torturar o concreto, até ele não
poder mais. Gente que aperta cilindros desse material cinzento entre
robustos braços mecânicos. Chega uma hora, os cilindros
espatifam-se com a pressão de dezenas de toneladas. E não é só
isso.
Outras amostras — ou corpos de prova, como preferem os
especialistas — são abandonadas em equipamentos que mais parecem
geladeiras, ficando ali dentro expostas a fumaça, ácidos e
temperaturas extremas.
Algumas das peças sacrificadas foram retiradas diretamente de
pontes, barragens ou edifícios, com o auxílio de um aparelho capaz
de cortar a rigidez do concreto, graças a uma afiadíssima lâmina
de diamante. Mas há também pedaços de concreto moldados exatamente
com essa finalidade — serem testados para ver qual a sua
resistência. Se está baixa, é sinal de que o concreto pode ficar
doente ou mesmo já adoeceu. O que, muitas vezes, se traduz em ameaça
de ruína, ao pé da letra.
Para se ter uma ideia do tamanho da encrenca, 19 (dezenove) de
cada 20 (vinte) edificações brasileiras — de pontes a hospitais,
de barragens a escritórios e residências — são construídas com
esse material. De fato, sua proporção de uso é altíssima em todos
os cantos da Terra. Só no ano passado foram produzidas 1,4 bilhão
de toneladas de cimento e isso dá para fazer uma montanha de 1 (uma)
tonelada de concreto para cada cidadão do planeta.
O concreto surgiu na Europa em meados do século passado. Sua
solidez, então, parecia eterna. Mas essa imagem ruiu. Os primeiros
sinais de doença — marcas amareladas e rachaduras — apareceram
nos anos 40, nos Estados Unidos, que, desde então, fazem exames
periódicos nas obras.
Todo o cuidado, porém, não foi suficiente para evitar o que engenheiros americanos consideram uma epidemia. Calcula-se que 10% das estradas nos Estados Unidos, feitas de concreto em lugar de asfalto, estejam doentes, e 230.000 das 575.000 pontes existentes no país precisam de tratamento (aproximadamente 15.000 delas correm risco de vida, exigindo urgentemente uma UTI tecnológica).
Os números impressionantes deste último levantamento
epidemiológico, por assim dizer, está deixando o Departamento do
Transporte do Governo desesperado: preveem-se gastos de 50 bilhões
de dólares, nos próximos dois anos, para realizar os primeiros
socorros. Para conseguir dinheiro, o governo pode recorrer a um
ligeiro aumento nos impostos — que, lá, não sobem assim, sem
mais, nem menos.
Na Europa, o controle da saúde do concreto começou para valer
apenas no final dos anos 70, quando surgiram as primeiras barragens
doentes na França. No ano passado, os franceses constituíram um
comitê técnico para cuidar das estruturas problemáticas. Outros
países europeus estão fazendo o mesmo. No Brasil, tudo é mais
devagar.
O estudo das doenças do concreto é uma das mais recentes áreas
da Engenharia. Como nos seres humanos, existem problemas congênitos
— por causa de material de baixa qualidade ou processos de
construção inadequados, algumas estruturas já nascem doentes. As
obras saudáveis, por sua vez, tendem a ficar doentes com o passar do
tempo, assim como uma pessoa na terceira idade tem mais chance de ir
parar no hospital.
Em todo caso, a distribuição das manchas e os desenhos formados
pelas falhas são importantes para se diagnosticar o tipo de mal e a
sua gravidade. “Há fissuras e fissuras”, distingue o engenheiro
Paulo Helene, professor da Escola Politécnica da Universidade de São
Paulo. Autor de três livros sobre o assunto e tradutor de outros
três, Helene tem olhar clínico: “Para o leigo, uma rachadura
incomoda muito, dando a impressão de que tudo irá desabar. Mas nós,
engenheiros, observando a configuração das trincas, analisamos se a
estrutura está comprometida.”
Entre as enfermidade nacionais, há uma cuja origem é familiar a
cada um de nós: o gás de cozinha. Isso mesmo. A Congás consegue
cobrar nas contas apenas cerca de metade da sua produção. Sinal de
que a outra metade — ou parte dela — se perdeu em vazamentos. “No
solo, o gás acaba formando o ácido sulfídrico”, explica Helene.
“Essa substância ataca o concreto. Reage com seus componentes e,
depois disso, ele começa a se expandir perigosamente.” Os
engenheiros podem usar aditivos e cimentos especiais na receita do
concreto, tornando-o menos reativo ao ácido sulfídrico, o vilão
desta história. Podem ainda aplicar substâncias protetoras nas
estruturas prontas. Enfim, dão um sumiço nos sintomas, apesar de o
solo continuar contaminado.
Há casos em que o concreto não tolera tratamentos paliativos
como esse por muito tempo. É o que está acontecendo na Barragem de
Moxotó, em Alagoas. Construída há dezesseis anos pela Companhia
Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), tinha tudo para chegar
inteira aos 200 anos de vida. No entanto, ainda jovem, já está com
os dias contados. Sua doença é outra, mas também faz o concreto
engordar: trata-se da chamada reação álcali-agregado. A culpa é
de ingredientes dele próprio, ou seja, é um ataque interno, contra
o qual nenhuma terapia consegue fazer nada.
Os engenheiros fazem o que podem com Moxotó — o concreto se
alarga, estrangulando as turbinas e eles vão lá, cortando pedaços
ao redor, para deixar as hélices girar em paz. O efeito não dura
para sempre. Uma das oito turbinas já teve de ser desligada. Os tais
álcalis causadores do problema são a soda cáustica e o potássio,
que todo cimento tem, uns mais, outros menos — e o cimento é o
principal ingrediente do concreto. Já as pedras e a areia que também
entram em sua composição são conhecidas por agregados e, às
vezes, contêm moléculas reativas aos álcalis. Daí o nome da
doença, reação álcali-agregado.
Ela é mais comum no Nordeste do país, onde as pedras disponíveis
para se fazer o concreto são de origem vulcânica. Parte delas
contém as tais moléculas reativas. São moléculas de sílica,
substância encontrada em tudo quanto é rocha, pedrinha, pedregulho.
A questão é que ela existe em duas versões: numa delas, a sílica
está arrumadinha, na forma que os químicos rotulam de cristal. Na
segunda versão, apresenta-se como moléculas amorfas e são elas que
reagem com os componentes do cimento, resultando em moléculas
grandalhonas, que colocam o concreto no maior aperto.
Há muito otimismo quando se discute a prevenção de doenças nas
construções. Antes mesmo de se erguer um edifício, arquitetos e
engenheiros estudam tudo o que pode ser feito para aumentar a sua
longevidade. Os especialistas podem reunir elementos para afirmar se
uma obra irá durar 50 ou 60 anos com saúde perfeita.
Mas, nessa matéria, fazer cálculos nem sempre é simples. Dá
até para estimar o que irá acontecer com um prédio que ainda não
foi construído ou por quanto tempo um concreto doente aguentará
firme. Difícil é estimar a vida dos prédios espalhados pelas
cidades, que ainda estão saudáveis. “Uma de nossas metas é saber
quanto tempo dura todo concreto que já existe por aí”, explica o
engenheiro Carlos Eduardo Tango, do Instituto de Pesquisas
Tecnológicas (IPT), em São Paulo. “Apesar de não viver para
sempre, ele ainda é de longe o melhor material de construção
conhecido.”
O concreto é a paixão do pesquisador, cuja tese foi uma análise
do estado desse material nos prédios mais antigos do Brasil. Uma de
suas conclusões é que já não se fazem concretos como antigamente:
“As obras mais modernas tendem a ser menos resistentes”, afirma.
Será que mudou tanto assim a receita do concreto com o passar do
tempo? A resposta é não: ela continua a mesma. “Mas hoje as
partículas de cimento são menores”, diz Tango. “Portanto têm
mais superfície em contato com o reagente, que é a água.” Ocorre
algo análogo ao que se dá com uma pastilha de sal de frutas —
quebrada, ela derrete mais depressa.
A água é o bem e o mal do concreto. Sem ela, não há negócio:
a água é imprescindível para o cimento endurecer. Mas que seja na
medida certa. “Se é acrescentada de menos, o resultado é uma
massa pouco maleável, difícil de se trabalhar”, explica o
engenheiro do IPT. “Se é colocada só um pouquinho a mais, o
concreto perde a sua famosa resistência.” Em outras palavras:
torna-se mais poroso. Pois, apesar da aparência compacta, de perto,
muito de perto, o concreto se assemelha a uma colméia.
O microscópio revela seus túneis, pelos quais passam os mais
diversos agentes agressivos. Inclusive água, que pode se converter
numa das suas piores inimigas. Isso porque ácidos e outros
agressores se dissolvem e pegam carona no líquido, para alcançar as
profundezas do concreto. “Tanto assim que as doenças são mais
comuns nos climas úmidos”, observa o pesquisador. “Ou nas
estruturas que têm contato direto com a água, como as pontes e as
barragens.” É por isso que as casas dos pernambucanos, apesar de
provavelmente terem sido feitas com a mesma espécie de concreto de
Moxotó, não estão ameaçadas como a barragem.
Mas, justiça se faça, a água pura não tem nada contra o
concreto. Mas quando alcança as barras de aço no seu interior, aí,
sozinha, é fatal. O chamado concreto armado — a combinação desse
material com barras de aço — é um casamento perfeito. Pois o
concreto simples é ótimo para aguentar compressão, que os leigos
definem como peso.
Quando alguém sobe numa tábua, por exemplo, está comprimindo a
madeira. Numa casa de dois andares, por sua vez, os pilares do térreo
estão suportando a compressão do segundo pavimento. Mas há uma
qualidade que o concreto simples não tem: não resiste muito bem à
tração, que é a força que se faz numa corda, quando duas pessoas
puxam suas extremidades. É nessa característica — fundamental
para a construção civil — que o aço é uma fera. Junto com o
concreto, portanto, ele forma uma dupla imbatível.
No entanto, 90% dos casos de doenças no concreto são problemas
de corrosão de sua armadura de ferro. A questão é tão séria que
a Escola Politécnica da USP inaugurou, há dois meses, o Lab Cor, um
laboratório dedicado à deterioração das barras dentro do
concreto. O maior orgulho de seus pesquisadores é o chamado G-Cor.
Não é à toa: só existem três exemplares desse aparelho no mundo.
Há mais um nos Estados Unidos e outro na Espanha. O G-Cor emite uma
corrente elétrica através de eletrodos, fixados na estrutura
examinada. Antes, os pesquisadores se informam do diâmetro de barras
daquela obra e calculam quanto da eletricidade será conduzido pelo
metal.
Se houver diferença entre o resultado estimado e o registrado
pelo aparelho, é sinal de que as barras entraram em corrosão. Isso
porque, como a ferrugem não conduz eletricidade, se a corrente
elétrica conduzida for menor do que o esperado, sabe-se que parte do
metal já enferrujou. O G-Cor aponta ainda a exata proporção do
metal enferrujado.
“Em geral, as doenças não ocorrem separadamente”, explica o
engenheiro Luiz Alfredo Falcão Bauer. “Uma trinca, causada pela
doença de expansão, pode deixar que a água alcance a armadura.
Então, a ferrugem aparece, como um segundo mal.” A empresa fundada
por Bauer há mais de quarenta anos, em São Paulo, é uma das
pioneiras em tratamento do concreto no mundo. Quando aparecem grandes
problemas, o engenheiro grisalho e bem-humorado costuma dar seu
parecer. Ultimamente, vem estabelecendo limites: “Não viajo mais
do que três vezes por mês para ver as minhas doentes.” Obras
doentes, bem entendido.
Para o diagnóstico, Bauer e seus colegas de área contam com um
arsenal de quase cinquenta exames. Corantes tingem de verde a área
do material que perdeu resistência, por causa da maresia, por
exemplo. “Usamos até o ultra-som, como os médicos, para avaliar a
localização e o tamanho dos danos”, conta o engenheiro.
“Felizmente, também não faltam terapias, que vão de
revestimentos especiais a técnicas como os jatos de areia para
retirar a ferrugem. Isso resolve boa parte dos casos. Mas o
fundamental é melhorar a qualidade das obras, para que não adoeçam
tanto e tão cedo.”